Antes, dera entrada no dia 10 no Hospital Municipal Miguel Couto com infecção urinária e pneumonia. Foram 24 dias de luta.
Sua resistência impressionou médicos do Pedro Ernesto. “Ele não quer ir embora” foi uma das frases que disseram durante o tratamento.
Em mais de cinco décadas de atividade, Blanc construiu uma obra marcada pela capacidade de fundir os contrários: humor e fossa, devaneio e realidade, lirismo e grossura, a aldeia e o mundo.
Dor e alegria já estavam embaralhadas na infância de Aldir Blanc Mendes. Ele nasceu em 2 de setembro de 1946, no bairro do Estácio, berço do samba urbano carioca. Sua mãe nunca se recuperou totalmente de uma depressão pós-parto. Seu pai, que se tornaria um grande amigo, era pouco afetuoso. O filho único foi ser feliz com os avós em Vila Isabel, bairro de um seus ídolos, Noel Rosa -e, triste coincidência, do hospital onde morreu.
Recordou os tempos de criança no emotivo livro Vila Isabel – Inventário da infância, de 1996. Na região conheceu (e reinventou) os personagens de suas crônicas, reunidas em volumes como Rua dos Artistas e Arredores (1978) e Porta de Tinturaria (1981).
Mas foi a música que tornou seu nome conhecido nacionalmente. Em meados dos anos 1960, enquanto praticava letras e poemas, atuava como baterista em conjuntos semiprofissionais. Chegou a ser contratado para tocar em um programa infantil da TV Globo.
As primeiras letras a chamar atenção apareceram em festivais do final da década. O sucesso veio com Amigo É pra Essas Coisas, parceria com Silvio da Silva Jr. que ficou em segundo lugar no Festival Universitário de 1970. Foi o período em que ele integrou o MAU (Movimento Artístico Universitário), ao lado de Ivan Lins, Gonzaguinha e outros.
No ano seguinte, um rapaz chamado Pedro Lourenço se impressionou em Ouro Preto com um estudante de engenharia tocando violão. Disse a ele, João Bosco, mineiro de Ponte Nova, que tinha um amigo no Rio de Janeiro capaz de pôr palavras naquelas melodias. Nascia um dos encontros mais importantes da música brasileira.
A leva inicial de composições se deu por carta. Um exemplo: Agnus Sei, lançada em 1972 num disco compacto do jornal O Pasquim, tendo Águas de Março, então inédita, interpretada por Tom Jobim no lado A.
Com Bosco já no Rio, mostraram algumas músicas para Elis Regina. Ela escolheu Bala com Bala para o disco que estava realizando e reservou outras para o trabalho seguinte. Passou a receber em primeira mão as novidades da dupla. Gravou 20 delas, além de duas de Blanc com outros parceiros -o irmão de fé Maurício Tapajós e a amiga Sueli Costa.
A assinatura Bosco e Blanc consta de canções marcantes como O Mestre-sala dos Mares, Dois pra Lá, Dois pra Cá, De Frente pro Crime, Kid Cavaquinho, Incompatibilidade de Gênios, O Ronco da Cuíca, Transversal do Tempo, Corsário, Bijuterias, Nação (esta também com outro grande amigo, Paulo Emílio) e, é claro, O Bêbado e a Equilibrista.
Os dois amigos inseparáveis começaram a se separar em 1982. Foi gradual e, de acordo com eles, sem brigas. As melodias de um e as letras do outro passaram a não se encaixar.
Porém, talvez por influência de terceiros, mágoas surgiram. O reencontro (imprevisto) aconteceu apenas em 2002, numa gravação de O Bêbado e a Equilibrista por Blanc para o songbook de Bosco. Desde então voltaram a se falar por telefone diariamente, além de compor às vezes, sem a urgência dos anos de juventude.
O letrista engatou outras parcerias. Duas foram as mais produtivas: com Guinga, violonista e compositor originalíssimo, explorador de vários gêneros, melodista de Catavento e Girassol; e com Moacyr Luz, artista mais identificado com o samba, mas com quem Blanc criou a romântica Coração do Agreste, tema da novela da TV Globo Tieta, na voz de Fafá de Belém, e um dos maiores sucessos de sua carreira.
Intérpretes realizaram CDs apenas com letras suas. Foram os casos recentes da portuguesa Maria João e da carioca Mariana Baltar. Ele passou a receber encomendas de artistas mais jovens. Ficava entusiasmado, mas sabia que dificilmente se converteriam em frutos financeiros. No panorama atual, direitos autorais rendem muito pouco, e Blanc dependia deles.
Embora tivesse boa voz -como provou no CD Vida Noturna (2005) e, antes, no álbum que dividiu com Maurício Tapajós, em 1984, e em faixas do comemorativo 50 Anos (1996) -, não fazia shows.
Desenvolveu uma fobia social que se converteu em reclusão quase permanente. Contribuiu para isso um grave acidente de carro acontecido em 1991 e que lhe dificultou para sempre o movimento da perna esquerda. Também tinha diabetes. Havia mais de dez anos que, salvo dias de exceção, não fumava nem bebia.
Adorava falar pelo telefone com os amigos. Comentava o noticiário -com humor e indignação- e compartilhava informações sobre a família. No primeiro casamento teve duas filhas, Mariana e Isabel. Mas, tristeza maior de sua vida, perdeu gêmeas que se foram no dia do parto prematuro, em 1974. Dizia que ali perdeu o ânimo para exercer a medicina profissionalmente. Ele se formara em 1971, com especialização em psiquiatria.
Quando se casou com a professora Mari Lucia, ela já tinha duas filhas, Tatiana e Patrícia. Viraram suas também. Das quatro vieram cinco netos e um bisneto.
Nos dias anteriores à internação, falava sempre da Covid-19, com medo de que alguém amado fosse atingido. Não demonstrava preocupação consigo mesmo. Foi pego de surpresa. Numa quinta-feira estava bem, na sexta foi levado de ambulância para o hospital. Deixa, além da família, uma legião de amigos e admiradores.